Sinceramente, não percebo a oposição da nossa esquerda partidária à obrigatoriedade do aconselhamento durante um eventual processo de interrupção voluntária da gravidez. É, com pesar, que vi o líder do grupo parlamentar do Partido Socialista referir-se a esta questão com arrogância e sobranceria. O pensamento subjacente a estas declarações é este: “impediram-nos de liberalizar o aborto durante tantos anos e agora querem impor-nos o conteúdo desta, a nós que ganhamos o referendo!”. Encarar os pretéritos referendos como vitórias ou derrotas partidárias é um tremendo erro e uma perfeita estupidez.

O mandato conferido, embora juridicamente não vinculativo, é politicamente vinculativo. O respeito pela vontade política expressa no primeiro referendo justifica que se respeite a expressa no segundo. Quem afirmar o contrário estará a ser obtuso ou pouco sério. Pelo contrário, o recente acto eleitoral exige uma alteração da lei e responsabiliza em especial o Partido Socialista por essa alteração (visto ser o Partido com maioria na Assembleia da República).

O cerne da questão está na forma e no conteúdo dessa alteração. Ela não deverá ter como principal preocupação a facilitação do aborto mas a facilitação de uma decisão ponderada e consciente. E se entendermos a questão nestes termos, não vejo como o aconselhamento obrigatório possa ser contra-indicado.

E não se diga que o aconselhamento visa a dissuasão da mulher ou “menoriza” esta. Basta assegurar que o aconselhamento seja prestado por profissionais habilitados e competentes. “Menorizar” a mulher seria pensar que esta se deixaria demover da sua decisão por simples pressões morais ou sociais exercidas por quem a deveria aconselhar. Nem tão pouco se pense que um período de reflexão é suficiente. Sem o aconselhamento obrigatório, este não será mais do que uma simples formalidade legal.

Não basta assegurar que a decisão caiba à mulher. Exige-se ao Estado que proporcione à mulher a possibilidade de a tomar em condições de pleno esclarecimento.

Alterar a lei sem procurar um consenso com o PSD (pelo menos) e o PP apenas significa protelar e eternizar discussões em torno de uma questão fracturante da nossa sociedade e das tradicionais divisórias políticas. Fechar os olhos às melhores práticas europeias nesta matéria seria uma miopia indesculpável.

Não perceber tudo isto é abrir as portas a futuras alterações unilaterais da lei. Afinal de contas, desde que se respeite a liberdade de decisão da mulher em abortar até às 10 semanas, nada impede que futuras maiorias reforcem as condições dessa liberdade.

2 Comentários a “Aconselhamento e desentendimentos.”

  1. # Blogger Alex

    Leandro, parece-me que a questão da obrigatoriedade do aconselhamento tem fundos diferentes na visão do PS e da esquerda parlamentar.
    Os partidos de esquerda representados no Parlamento defendem aqui uma permissividade na decisão do aborto que considero, pessoalmente, excessiva. No entanto, compreendo o ponto de vista.
    O caso do PS é diferente. O pendor des-estatizante do Governo e as mensagens enviadas pelo Minsitro da Saúde apontam para que uma das motivações do empenhamento do partido no referendo era facilitar o negócio às clínicas de aborto, tanto as que já existem como as que vão abrir. Ora, aqui é que a porca torce o rabo, porque no SNS os psicólogos são um bem raro, e o PS não vai colocar mais ninguém; já no privado, eles são praticamente inexistentes, e o Executivo não quer estragar o planeamento às clínicas, obrigando a consultas com profissionais que elas não possuem. Assim, a questão é mais de ordem prática do que ética.  

  2. # Blogger Mário Azevedo

    em conclusão, alex: os partidos de esquerda são todos uns bem-intencionados; já o PS, cruz credo, é tudo uma cambada de capitalistas, que só estão preocupados em garantir o lucro aos mauzões das clínicas privadas.  

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